segunda-feira, 26 de outubro de 2009

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SHERAZADE E O VALOR DO AMOR

(Texto adaptado do livro “ A pedagogia do amor” , de Gabriel Chalita)

Sherazade é, sem dúvida, a grande dama de As mil e uma noites, um conjunto de histórias cujos registros não nos permitem conhecer as datas exatas em que foram escritas, tampouco a sua autoria. Os diferentes gêneros que compõem as narrativas – contos, fábulas, lendas, novelas, parábolas, anedotas e aventuras de caráter exótico – bem como a mistura de referências geográficas e culturais existentes nas tramas tornam praticamente impossível creditar os textos a um único autor.
A personagem Sherazade, no papel de narradora, é a espinha dorsal que sustenta todos esses fantásticos enredos orientais. Ela é a detentora dos mistérios, das lendas e tradições que, há milhares de anos ,vêm seduzindo leitores e ouvintes de todas as nacionalidades.
Essa história específica relata que o poderoso sultão Shariman, do antigo Oriente, foi vítima da infidelidade da primeira esposa e, por isso, jurou a si mesmo jamais confiar novamente no amor de uma mulher. Dono absoluto do poder em Bagdá, Shariman decidiu que se casaria com uma mulher a cada dia e, após a noite de núpcias, mandaria executá-la ao nascer do Sol. Dessa maneira, imaginava o triste sultão que evitaria novas traições. Muitos foram as jovens escolhidas para desposá-lo. Suas famílias, que não ousavam desobedecer às ordens do soberano, sofriam com o cruel destino imposto às filhas: o amor fugaz e a morte iminente.
Algumas donzelas, aterrorizadas com a possibilidade de serem escolhidas por Shariman, fugiam para lugares distantes. E assim todos os domínios de Bagdá viviam sob o terror da triste e amarga história de seu sultão.
Chegou, enfim, o dia em que o vizir Mustafá, encarregado por Shariman de escolher suas futuras esposas, não encontrou mais nenhuma jovem para levar ao seu senhor. Já era bem tarde quando o vizir entrou em casa, com uma expressão séria no rosto, preocupando suas duas filhas, Sherazade e Deniazade. A mais velha, Sherazade, percebendo a tristeza e o nervosismo do pai, propôs uma solução que resolveria o problema não só do querido pai mas de todo o reino: oferecer-se como esposa ao rancoroso sultão. Mustafá tentou demover a filha dessa idéia arriscada, mas a bela jovem estava determinada a pôr em risco a própria vida para salvar o povo do reino de Bagdá.
A formosa e perspicaz Sherazade consumia seus dias na leitura de histórias, ouvindo, encantada, as mais diversas lendas e contos, instruía-se nas ciências e, além de tudo, era dotada de memória prodigiosa. Sua inteligência, aliada ao mundo mágico desvendado pela leitura, muniu-a do raro e fascinante poder de lidar com as palavras. E era nesse seu poder de sedução que a bela jovem confiava para salvar o reino de tamanha crueldade! A sedução de narrar histórias...
No dia seguinte, Sherazade e o pai seguiram para o esplendoroso palácio de Bagdá para se apresentar ao sultão. Shariman, fascinado pela beleza da jovem, aceitou desposá-la imediatamente. A astuta noiva, no entanto, já fizera seus planos. Na noite de núpcias, conforme havia combinado com sua irmã mais nova, Deniazade chegou aos aposentos do casal chorando e pediu à irmã que lhe contasse uma de suas fantásticas histórias. Sherazade, com voz doce e melodiosa, começou então sua narrativa, prendendo a atenção do sultão e da irmã até o amanhecer. Shariman ouviu-a atentamente, encantado e ansioso pelo final. Ela, no entanto, percebendo o olhar curioso do marido, interrompeu a narrativa no ponto culminante. O sultão decidiu, então, poupar sua vida para que ela pudesse dar continuidade à história na noite seguinte.
Usando o sagaz artifício de emendar uma história na outra, Sherazade vai adiando a data de sua morte sempre para o dia seguinte. E assim, encantando e despertando a curiosidade de seu cruel esposo com suas envolventes narrativas, passaram-se mil e uma noites.
É então Sherazade, já com a imaginação esgotada de tecer tantas histórias durante aquelas infindáveis noites, se vê diante de Shariman, mas agora ele está perdidamente apaixonado e seduzido.
O nobre sultão, cuja alma sofria encarcerada pelo sentimento de vingança, liberta-se da dor e da tristeza da traição, abolindo o cruel destino das esposas, que aterrorizava todas as famílias de Bagdá.
Sherazade, além de sua extrema beleza, trazia consigo um tesouro oculto: a sedução pela palavra. Um poder que lhe valeu a própria liberdade e a libertação de uma alma, traduzida, neste conto, na transformação do ódio em uma linda história de amor.

A personagem Sherazade simboliza a importância da narrativa, das histórias, do aprendizado, da sedução do discurso e do poder da palavra na vida de todos nós.
A história de Sherazade é um exemplo da habilidade, da competência, da amorosidade e do espírito de doação existentes, em maior ou menor grau, em todas as mulheres. Porém ela nos ensina a todos, independentemente do sexo, que o conhecimento apreendido por meio das histórias é fundamental para iluminar os caminhos – muitas vezes tortuosos – de nossas vidas.
A bela e sábia personagem oriental nos ensina também que a rapidez de raciocínio, a criatividade e a capacidade de persuasão e de argumentação são imprescindíveis à resolução de problemas e ao enfrentamento das situações difíceis pelas quais todos passamos na vida.
O corpo, a fala, os gestos, o olhar, o modo como nos expressamos e nos apresentamos ao mundo ... Tudo é linguagem, tudo comunica, tudo em nós compõe a história que, dia a dia, escrevemos sem nos dar conta. Somos um complexo e requintado sistema de comunicação que emite sinais e códigos, os quais originam informações variadas aos nossos interlocutores.
Sherazade nos ensina que o que somos, pensamos e vivemos é, na verdade, um misto de todas as nossas experiências acumuladas e (re)elaboradas e o modo como elas nos tocaram desde muito antes de nossa memória consciente. Somos, por extensão, um emaranhado vivo de histórias, tanto as que protagonizamos quanto aquelas a que tivemos acesso como ouvintes ou leitores. Nós nos mesclamos a elas, nos enredamos em suas tramas e, de repente, passamos a ser a fibra forte que compõe o texto (do latim textum, que significa “aquilo que foi tecido”).
Somos, além de tecido, esponjas. Os sonhos, os exemplos, as sensações captadas nas histórias alheias são, para nós, uma espécie de alimento. Um pão todo especial que nos abastece e possibilita nosso crescimento e sadio desenvolvimento.
Precisamos buscar em nosso íntimo a sedução e a habilidade de Sherazade, de modo a transmitir a nossas crianças e jovens a beleza e a riqueza incalculável das histórias. Histórias que nos auxiliam a compor não só nossa própria personagem, enredo e obra, mas, sobretudo, histórias que nos capacitarão, com seus ensinamentos, a ser livres, cartógrafos de nossa própria geografia, escritores de textos imprescindíveis à comunidade, à sociedade, à nação, ao mundo em que vivemos.
Que Sherazade, essa musa incontestável do amor, do espírito de doação e de entrega, da sedução pela palavra e da libertação, nos alimente com seu amor fraterno, nos inspire e nos dê asas nesse voo rumo à conquista de novos aprendizes.


Um comentário:

  1. Excelente texto! A melhor análise sobre Sherazade que já li até hoje. Parabéns pela maravilhosa tecitura das palavras que unidas compuseram esse maravilhoso texto!

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